Professor Dirceu Aguirre
CATARSE
Os fantasmas decorrentes ainda rondam nossa sociedade e de vez em quando se manifestam abalando nosso precário equilíbrio social.
Pareceu-me oportuno, nesse novo ano que se inicia, fazer uma breve reflexão sobre alguns dos fatos históricos que afetam o inconsciente coletivo do nosso povo brasileiro, na perspectiva da necessidade de mudança e evolução.
Se um dia um alemão, cidadão comum, for visitar outro alemão, sem avisar antes, assim que chegar o dono da casa certamente vai perguntar: - o que você veio fazer na minha casa?
Se um de nós, brasileiros, recebêssemos a visita inesperada de um conhecido, nós também vamos fazer a mesma pergunta, assim tão diretamente? Certamente não, pois para nós seria uma grosseria, uma falta de educação, mesmo a gente estando com vontade de perguntar. Essas são diferenças culturais (embora um tanto estereotipadas). Isso não significa que um seja melhor que o outro, pois a cultura de um povo é a resposta à sua circunstância existencial com vistas, em última análise, à sobrevivência e à preservação da espécie. Portanto, de circunstâncias existenciais diferentes brotam culturas diferentes.
O alemão costuma ser objetivo, vai direto ao assunto. Nós com frequência ficamos "rodeando o toco". No caso, certamente a gente diria: - bom dia, vamo chegando...
Os estudantes alemães, hoje, estudam a fundo o nazismo, em todas as escolas. O nazismo foi um período de domínio do mal sobre grande parte da humanidade e, para o povo alemão, foi um profundo trauma social. Mas, porquê, então, eles estudam tanto isso? Eles realmente estudam o nazismo com todas as suas implicaçōes, para que, conhecendo a fundo o mal que essa ideologia causou à humanidade, o povo alemão consiga extirpar os traumas e fantasmas, de tal forma que a sociedade alemã nunca mais caia nas garras dessa perversa ideologia. Em psicologia esse processo se chama catarse, que se caracteriza pelo enfrentamento a fundo do problema e jogar para fora os males que ele representa. Esse processo pode ocorrer tanto em nível pessoal como coletivo.
Em nossa história brasileira já tivemos diversos fatos traumatizantes, como a escravidão, a ditadura militar e outros. Os fantasmas decorrentes ainda rondam nossa sociedade e de vez em quando se manifestam abalando nosso precário equilíbrio social. A nossa cultura de não bater de frente, de ficar rodeando o toco tem suas raízes em nossa história de autoritarismo e de exploração dos povos indígenas e dos negros, etnias que determinaram profundamente a formação da cultura do povo brasileiro. A dissimulação e a atitude aparentemente servil foram mecanismos de sobrevivência cristalizados no inconsciente coletivo ao longo dos séculos.
A cultura de um povo é algo vivo, dinâmico, está em constante transformação. Uma enorme riqueza de nosso povo, diferente da maioria de outros povos, é a nossa diversidade cultural. Ao lado dos grupos indígenas, dos portugueses e dos negros juntaram-se espanhóis, italianos, japoneses, alemães, árabes e mais dezenas de outros povos formando essa grande nação em crescimento, em formação, contribuindo para o crescimento da vida no planeta. No entanto, temos também as sombras e os fantasmas de nossa história se manifestando ainda nos preconceitos, na discriminação racial, na desigualdade econômica, na intolerância, na discriminação religiosa, nas situações análogas à escravidão, tudo isso por vezes se traduzindo em atos de violência e morte. Esses traumas ocupam tanto as nossas mentes a ponto de nos impedir de ver novos horizontes, novas formas mais justas e mais humanas que permeiem o funcionamento de uma sociedade considerada civilizada. Daí a necessidade da catarse.
Poderá a sociedade brasileira evoluir no nível de consciência moral e altruísta a ponto de desenvolver o necessário processo de catarse de sua própria história?
As eleições são, de certa forma, um processo de catarse. Nas últimas eleições tivemos a oportunidade de discutir os nossos problemas e as perspectivas de mudanças, com a urgente e necessária mudança da maior parte dos nossos políticos. No entanto, políticos corruptos e que haviam aprovado leis opostas aos interesses da maioria da população pobre, continuaram sendo eleitos por boa parte dessa população. Os meios de comunicação eletrônica democratizaram as informações, mas também democratizaram a ignorância, as desinformações e o negacionismo. Esses e outros fatos nos levam a duvidar de nossa capacidade de uma auto análise profunda, consistente e verdadeira. No entanto, ao longo da nossa história nosso povo tem demonstrado uma enorme capacidade de resistência, renovação e criatividade. E eu ainda continuo acreditando nisso, na resiliência e na capacidade transformadora de nosso povo, para continuar caminhando rumo a um humanismo planetário.
Professor Dirceu Aguirre - Santa Terezinha, em 02.01.2024
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